top of page
  • Foto do escritorGrupo Amora Terra

Carta aos moradores da "bolha estourada" - 02/03/2020

Atualizado: 5 de mar. de 2020



OBS: Esta carta é para mim, para você e para todos os seres humanos que habitam este planeta, independente de classe social ou grau de consciências ecológica.



Santos, 3 de março de 2020.

Querido leitor,
Estou às vésperas de um concurso público e, dentro do possível, tenho estudado um pouquinho diariamente. Ontem, ao olhar o que ainda faltava, escolhi ler sobre bacias hidrográficas.
Ao som da chuva intermitente, passei meu dia alternando horas de estudo com intervalos de descanso, lendo sobre os efeitos da ação antrópica nos cursos d’água, incluindo as alterações nas vazões da chuvas provocadas pelo mal planejamento urbanístico e ocupacional.
À noite, com a vista cansada de olhar a tela do note por um longo período, abri a janela para observar a tempestade. Neste momento, deparei-me com a ilustração prática e real do que havia acabado de estudar: trechos da Av. Siqueira Campos alagados e o canal 4 próximo ao limite de transbordo.
Sempre morei neste local e, ao ouvir amigos que moram em outros bairros (periferia ou classe média),  me considerava dentro de uma bolha. Estava ciente de que, quando essa bolha estourasse, a baixada estaria dando o sinal mais gritante possível em relação ao absurdo que nós, humanos, praticamos desenfreadamente.

Pois bem, meus amigos, ontem a pequena bolha estourou!

Meia noite e meia os interfones dos apartamentos tocaram para alertar que a garagem estava inundada e que todos deveriam correr para salvar seus carros e colocá-los em algum lugar menos inundado.
Vizinhos perambulavam de pijama, descalços, com água suja na altura dos joelhos, para tentarem, em uma atitude desesperada, salvar seus carros da garagem alagada.
Enquanto isso, observava-se, nas ruas, carros sendo governados pela contramão, indo e vindo, como carrinhos de “bate-bate”, em busca de vagas ou ruas onde pudessem estacionar ou seguir sem serem afetados pelo “estouro da bolha”.
A calçada foi a única opção para muitos veículos.
Durante a madrugada, ouvia-se incessantemente sirenes passando, em alta velocidade, no sentido da Ponta da Praia.
Sim, a Ponta da Praia é um bairro que alaga com muita facilidade e, em períodos de chuva, as pessoas têm que tirar seus carros de garagens subterrâneas para manobrar em estacionamentos acima do nível do mar, e ponto!
Ocorre que não é comum este vai e vem de sirenes seguindo para esta direção.
Hoje de manhã, obviamente, recebi notícias de vários outros bairros e não poderia esperar menos do que constatei: deslizamentos, alagamentos, soterramentos, mortes, famílias desaparecidas e pessoas que viraram a noite ilhadas dentro de um ônibus, depois de um dia inteiro trabalhando.
Hoje, dia 3 de março de 2020, pessoas privilegiadas, como eu, estão separando itens para doação, enquanto esperam a chuva amenizar para efetuar a entrega em algum ponto de arrecadação.
Essas doações, apesar de indubitavelmente valiosas, muitas vezes, são uma seleção de pertences que estão “tralhando” as nossas casas.
Ao fazermos isso, nos sentimos felizes com a nossa atitude e, ao mesmo tempo, “destralhamos” nossos lares e nossas consciências, repetindo inconscientemente um mantra mental de que “fizemos a nossa parte”.
Será??
Será mesmo que tudo o que podemos fazer é simplesmente nos livrarmos da culpa, nos livrando daquilo que nos é confortável se livrar?
Será mesmo que o ônus de um carro alagado é o máximo que pessoas de bairros mais bem estruturados podem sofrer?
Em uma situação emergencial, devemos sim separar itens para doações, mas enquanto estivermos nessa engrenagem de apenas doarmos nossos excessos, o caos se fará cada vez mais presente em nossas vidas.

Pergunto, então, aos caros habitantes do planeta “Bolha Estourada”:
- Como sair da zona de conforto naqueles dias confortáveis de sol de primavera para que o conforto coletivo seja minimamente garantido em longo prazo?
- Que atitudes e pensamentos devemos ressignificar e alterar para que um aparente desconforto em nossa rotina impacte efetivamente no bem-estar e na sobrevivência da nossa espécie?

Sim, estou considerando apenas a nossa espécie, porque, por mais que os ciclos naturais estejam alterados, estou convencida que, de alguma maneira, a natureza irá se recompor e se reinventar sem nós.
Nós humanos, no entanto, não sobreviveremos aos nossos próprios egos inflados por consumos desenfreados, disfarçados de necessidades.
Consumo de descartáveis, de combustíveis fósseis, de água, de madeira, de produtos diversos na busca desenfreada pela sensação de conforto, vaidade e poder!
Um poder que não podemos, mas achamos que podemos!
Enquanto continuarmos caminhando sem nos preocupar com as nossas pegadas, não teremos condições de exigir mudanças efetivas das autoridades.
Enquanto nossas doações de roupas, alimentos ou qualquer outro item for um “destralhe” momentâneo de nossas consciências, os problemas ressurgirão a todo momento.

Cuidemos para que nossas doações sejam mais altruístas do que egoístas.
Um beijo no coração!
Natália Dias Gonçalves 

10 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page